quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

As Valquírias (antes e agora)





A Valquíria foi a primeira ópera a que assisti ao vivo, de cima do galinheiro do São Carlos, onde só poucas vezes tive ocasião de voltar. Talvez não seja a obra mais indicada para a iniciação de um jovem, como eu era naquela época, na arte operática, mas a influência da audição muitas vezes repetida da Cavalgada das Valquírias num disco editado pela Reader’s Digest com vários trechos dos mais populares, que conseguira comprar a meias com a minha irmã com algum dinheiro ganho a dar explicações a jovens mais jovens do que eu, dera-me a vontade de assistir à ópera integralmente. Foram uma encenação e uma interpretação louvadas pela crítica, cabendo o papel de Brünnhilde a uma cantora wagneriana de nome Brigit Nielsen, se a memória não me atraiçoa. Anos depois vi referida várias vezes uma cantora pop de nome muito parecido (ou será confusão minha?). Ainda guardo uma muito boa recordação desta noite.

Vem isto a propósito da recente representação da mesma ópera também no São Carlos, mas agora com roupagens modernas, em sentido não figurado. Confesso que embirro solenemente com a tendência de muitos encenadores de teatro e de ópera modernos para vestirem de forma menos convencional, por vezes mesmo bizarra, as personagens de obras antigas ou cuja acção se passa em tempos remotos ou mesmo intemporais. As bizarrias estendem-se a toda a encenação, não só às vestimentas, incluindo o cenário e por vezes mesmo a maquilhagem e a movimentação em cena. Assim detestei ver na TV um Don Giovanni vestido à futrica num cenário completamente nu, com mobílias de linhas rectas, à Moviflor, mas de cores vivas. Cantavam bem mas preferi fechar os olhos. Também detestei um Barbeiro de Sevilha em que todos se vestiam à norte de África, como se alguma vez tivesse havido condes de Almaviva marroquinos a cantar serenatas a Rosinas mouras. Já não falo no Idomeneo com cabeças de deuses e profetas decepadas, já que só vi pequenos excertos e o assunto foi sobejamente comentado por outras razões, até por mim neste blog.

Mas o cúmulo foi mesmo esta Valquíria de saia travada e chapéu de aba larga, com um Wotan de camisa de flanela aos quadrados aberta sobre uma T-shirt, que até parecia um lenhador da Nova Inglaterra tal como os Monty Pyton os ironizavam. Bastou-me ver as imagens no notícia na TV. Ressalvo portanto a opinião que teria se tivesse assistido integralmente e ao vivo à ópera. Mas francamente não fiquei com vontade. Que significado poderá ter pôr o Wotan e a Brünnhilde vestidos com roupas modernas a jogar bilhar enquanto cantam? A crítica da representação de Pedro Boléo no Público limitava-se. sobre a encenação, a dizer: "A encenação de Vick, freudiana, psicanalítica, deu a volta à misoginia de Wagner de uma forma bastante interessante." Confesso o meu profundo desconhecimento das modernas tendências de encenação, mas como leigo seja-me permitido ter uma opinião. E essa opinião é extremamente negativa. Para ser original não é preciso pôr deuses das mitologias antigas ou personagens de outras épocas todos vestidos à moda hodierna (passe o pleonasmo, se é que o é). Até porque este modo de encenar teatro ou ópera já nada tem de original.
Nota: As ilustrações com diversas versões de valquírias foram retiradas do fascículo de "A Valquíria" das edições Altaya da Planeta-Agostini e do respectivo DVD.

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terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Má tradução, má informação

As declarações do comissário Almunia sobre o plano de ajuste orçamental apresentado pelo Governo Português foram mal traduzidas na reportagem de hoje da SIC Notícias. Quando o comissário disse "... es un ajuste presupuestario de medidas muy importantes.", a legenda rezava: "... é um ajuste de pressupostos de medidas muito importantes."

A frase assim traduzida fica quase incompreensível e de qualquer modo não corresponde ao original espanhol (ou castelhano). A palavra "presupuesto" em espanhol quer dizer "orçamento", e não “pressuposto”, e portanto "pressupuestario" quer dizer "orçamental". Um tradutor que traduza do espanhol e trabalhe para a televisão têm obrigação de saber isto. Este é apenas um exemplo, mas os erros de tradução e as modificações escusadas introduzidas pelos tradutores de declarações que podemos ir seguindo no original são constantes e muitas vezes alteram o sentido.

Já agora gostava de desmontar a ideia de que a língua espanhola e a portuguesa são muito parecidas. Claro que há muitas palavras parecidas ou até completamente iguais, mas há grandes diferenças e por vezes armadilhas de falsas analogias, como presupuesto -> pressuposto. Vivi alguns anos em Espanha e, tendo apenas aprendido a língua pela prática, pude aperceber-me destas diferenças.

Aqui vão alguns exemplos:
Espanhol Português
Cubierto -> Talher
Taller -> Oficina
Oficina -> Escritório
Escritorio -> Secretária (móvel)

Um aviso numa montra de Madrid:

"¡Ojo! Luna rota."

As palavras são todas conhecidas e muito semelhantes às do português. No entanto o sentido é completamente diferente: Em vez de "Olho! Lua rota.", que em português resulta disparatado, há que compreender: "Cuidado! Vidro partido." "Luna", além de "lua" significa também um vidro plano de grandes dimensões, como os das montras.

Os meus filhos, nessa altura ainda muito pequenos, acharam muita graça ao seguinte aviso numa feira onde era exibido um macaco: "¡Ojo al mono! Quita bolígrafos y gafas." Não há qualquer semelhança com o equivalente português, embora um português de cultura média perceba o sentido e tome precauções para que o mono não lhe quite os bolígrafos e as gafas.

Pena de morte

Foi pouco noticiado o enforcamento dum alegado responsável do atentado bombista que matou 11 guardas da revolução no Irão na quarta-feira passada.

Por enquanto não há notícias de reacções ou comentários. Independentemente do facto de a rapidíssima prisão de suspeitos e o curto prazo decorrido desde esta e a execução da sentença suscitar sérias dúvidas sobre a seriedade e a justeza do julgamento, a pena aplicada deverá merecer o repúdio de todos os que, como eu, discordam da pena de morte. Por isso espero bem que as boas almas e as organizações de defesa dos direitos do Homem que tanto protestaram contra a aplicação da pena de morte a Sadam Houssein se pronunciem agora contra esta execução com a mesma veemência. Ou será que a morte de um ditador sanguinário é mais condenável que a de um alegado bombista?

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Aborto (4) ou talvez não

Notícias recentes vieram lembrar-me a existência de um costume bárbaro e ilegal na Europa que as pessoas civilizadas, entre as quais julgo incluir-me, gostariam de ver erradicado. Não, não me refiro ao aborto, mas sim à excisão feminina. Muitas vezes efectuado sem quaisquer condições de higiene, sem anestesia, clandestinamente, afecta gravemente as suas vítimas, normalmente jovens mulheres cuja vontade não é consultada nem tida em conta.

Pois bem, a melhor solução para esta barbárie será despenalizá-la, se efectuada a pedido da própria ou da família durante os primeiros 10 anos de vida em estabelecimento para tal oficialmente aprovado. Acaba-se assim o flagelo, a humilhação, os perigos para a saúde das crianças sujeitas a esta prática. Claro que somos todos contra a excisão. Mas já que ela existe e a sua realização na clandestinidade é causa de tantos perigos e inconvenientes, nada como legalizá-la. E assim a ablação cirúrgica do clítoris, dos pequenos lábios e, se livremente solicitado, até dos grandes lábios será feita de modo higiénico e sem perigo nem sequelas, a não ser as inevitáveis de perda das partes retiradas, como é óbvio.

Certamente que os defensores do "sim" no próximo referendo à liberalização do aborto provocado (também chamada, só para complicar "despenalização da interrupção voluntária da gravidez") concordarão com a minha proposta, já que as situações, embora não totalmente equivalentes, têm muito em comum. Só não sei se para a despenalização da excisão será ou não de pedir um referendo. Deixo este pormenor à apreciação dos políticos ou dos juristas.

Dir-me-ão que há grandes diferenças entre os dois casos. Claro que há. Em primeiro lugar no caso do aborto perde-se uma vida enquanto que na excisão apenas se perdem alguns órgãos não fundamentais.
Reconheço que, por outro lado, no caso do aborto não é possível pedir a opinião do embrião, que, segundo me dizem, nem tem o sistema nervoso central formado, e portanto não terá opinião formada. No caso da excisão, nem sempre a própria concordará. Mas não obrigamos as nossas crianças a tantas coisas que elas não querem, como lavar as mãos antes de comer ou ir para a escola, porque achamos que as opiniões delas a respeito de muitos assuntos ainda não são de levar em conta. Daí prever um limite de idade. De resto em muitos casos, por educação, pressão familiar ou medo de não poder casar, a excisão é feita por vontade ou com o consentimento da própria. E não estou a ser sensacionalista: Há dias ouvi noticiar que o corpo clínico dum hospital italiano chegou a discutir a hipótese de efectuar uma excisão a pedido.

Concordo que a minha ironia sobre este caso pode ser considerada cruel. A minha desculpa é que estou a falar duma prática também cruel: o aborto.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

Aborto (3)

Porque voto Não:

Pelo bebé: para que nasça. Perguntem a qualquer pessoa que esteja com as suas faculdades mentais e emocionais equilibradas se gostava de ter sido abortada e não ter chegado a nascer, se prefere viver ou se gostava de nem sequer ter tido esta experiência. Abortar é condenar à não existência um ser humano.

Pela Mãe: para que não venha a sofrer o arrependimento. As dificuldades e o desespero que podem levar a desejar não ter o filho que está para nascer são normalmente ultrapassáveis e desfazem-se com o tempo. O acto de abortar, esse, é irremediável. Pela solidão em que estará no momento de decidir e para todo o sempre perante a consciência de o ter decidido. Pela falta de argumentos com que ficará perante um companheiro que lhe peça para abortar se este passar a ser legal, livre, seguro e grátis. A Mãe pode estar a desfazer-se do último filho que poderá ter, por questões orgânicas, de doença ou de acidente. Pode ser a sua última oportunidade.
Ao despenalizar o aborto e ao disponibilizar o Sistema Nacional de Saúde para este fim o Estado está a influir ilegitimamente na decisão da mulher grávida facilitando a consumação duma atitude tomada em desespero. Quando uma pessoa está em cima duma ponte hesitando se se atira ou não, é criminoso vir dizer-lhe que tem todas as facilidades para saltar.

Pelo Pai, que pode querer muito aquele filho, mas que só vai saber depois dele estar morto, porque a sua opinião não necessita sequer de ser ouvida.

Pela Humanidade, que perde uma vida que faz falta, porque cada um é único e insubstituível e todos fazem falta à evolução. Porque pode estar a perder alguém que pudesse vir a dar um contributo inestimável à Paz, à Ciência, à Saúde ou às Artes. Se as mães de Copérnico, Galileu ou Newton, se as mães de Bach. Mozart ou Beethoven, se as mães de Jenner (inventor da vacina), Pasteur ou Fleming, se as mães de Dante, Racine ou Voltaire tivessem decidido abortar os seus futuros filhos por dificuldades de momento, que perda teria sido para a Humanidade.

Eis as razões do meu voto.

M.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Abade Pierre

A notícia da morte no dia 22 de Janeiro aos 94 anos do Abade Pierre trouxe-me à lembrança recordações antigas de uma colaboração com a sua obra, muito breve mas que me marcou singularmente.

Foi no Verão de 1957, tinha eu 18 anos, que saí do País pela primeira vez para acompanhar a minha irmã mais velha a uma viagem que nos levou a um campo de trabalho em França organizado por uma instituição chamada Jeunesse et Réconstrution e que se dedicava desde o fim da guerra a auxiliar em tarefas de reconstrução. Esse campo de trabalho dedicava-se a preparar para os Companheiros de Emaüs do Abade Pierre os terrenos onde esta organização tencionava construir habitações para os sem abrigo, tarefa que ainda hoje, como sabemos, não está acabada.

A própria viagem foi uma aventura, de comboio até à fronteira francesa e depois à boleia, que nessa altura não era tão perigoso como agora, dormindo em Albergues da Juventude, coisa que era e continuou a ser durante muitos anos ainda desconhecida em Portugal. Uma brevíssima passagem por Paris maravilhou-me, mas o que mais me impressionou foi o próprio campo de trabalho e o seu ambiente.

Nunca conhecemos o Abade Pierre pessoalmente, mas no campo trabalhávamos não só com jovens franceses como com alguns dos companheiros, antigos sem abrigo que ajudavam o movimento. O sentimento de estarmos a fazer algo útil ajudava-nos a esquecer as bolhas nas mãos que o machado causava e o cansaço por tarefas a que não estávamos habituados. Apesar de não sermos católicos, nem eu nem a minha irmã, sentíamo-nos irmanados nesse esforço e nunca perdi uma simpatia especial por esse movimento.

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