sábado, 14 de julho de 2007

Incentivo à roubalheira

Leio com estupefacção que "o Governo se prepara para transformar em crime particular os furtos de valor inferior a 500 €". Isto significa que, se me furtarem o relógio, a camisola, um acessório do carro ou qualquer objecto até esse valor, eu terei de arcar com as despesas do processo se quiser denunciar o furto, incluindo pagar a um advogado. Claro que muita gente optará por arcar com o prejuízo e não o denunciar. É certamente esse o objectivo fundamental desta iniciativa do Governo: aliviar os tribunais. Não seria mais lógico e mais consentâneo com o combate à criminalidade, mesmo à pequena criminalidade, instituir tribunais de primeira instância com o mínimo de formalidades para julgamentos rápidos e expeditos? Serão os mais pobres os mais penalizados. A pequena criminalidade, se não for combatida na origem, incentivará a carreira do crime e conduzirá à grande criminalidade.

Verifico com espanto que o limite de 500 € é exactamente o mesmo que, na lei ainda em vigor apesar das promessas de alteração, obriga a declaração ao fisco e ao pagamento de 10% de imposto de selo, se uma pessoa doar essa quantia a outra, apesar de no caso de a doação ser entre familiares em linha recta, como pais e filhos, haver isenção do imposto mas não da obrigação de declarar. Quer dizer, se me furtarem 499 € não tem importância e nada sucede ao ladrão, a não ser que me dê ao trabalho e à despesa de o pôr em tribunal, mas se eu der 500 € ao meu irmão tenho de pagar 50 € de IS ao Estado e o meu irmão só receberá 450 €. É preferível, portanto, eu combinar com o meu irmão que ele me furte 499 €, prometendo eu não fazer queixa. Assim poupam-se 50 € e o meu irmão só fica prejudicado em 1 €. E mesmo que eu não tencione doar nada ao meu irmão (até nem tenho irmão), mas queira dar 500 € ao meu filho, mesmo assim, apesar da isenção do IS, vale a pena convencê-lo a furtar-me 499 € e doar-lhe só 1 €; assim não terei o trabalho de ter de fazer a declaração ao fisco, que nem sei como se faz, mas pode obrigar à compra de um impresso modelo tal e tal e/ou a deslocar-me a uma repartição de finanças ou pelo menos a fazer uma declaração electrónica, que não é de graça, gasta energia e rouba tempo.

Bem sei que, como já disse, há a intenção de modificar esta lei, mas nada foi dito sobre como ficará: cessa a obrigação de declaração em caso de pai e filho, é simplesmente aumentado o limite vigente ou qualquer outra coisa? Pelo sim pelo não, é melhor optar pelo furto. E não se pode dizer que faço neste blog um apelo ao crime, pois se furtar menos de 500 € vai ser descriminalizado... pelo menos deixa de ser crime público.

Comments: Enviar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?