sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Aborto (2)

Em quarto lugar, não me parece pertinente a polémica a que temos assistido nos meios de comunicação entre os apoiantes do sim e do não sobre as definições de "vida", "vida humana", "ser humano" e "pessoa humana" ou até "bebé" e as tentativas mais ou menos científicas de situar o início exacto destes estados.
A defesa da vida é uma nobre causa, mas mesmo os budistas defendem a inviolabilidade da vida animal, não se importando com as restantes formas de vida. Portanto é ocioso dizer que o embrião é uma forma de vida e portanto deve ser defendido. Mesmo dizer que é "vida humana" tem, para o efeito da sua inviolabilidade ou não e portanto da admissão do aborto, pouco significado. Quanto a mim mesmo um espermatozóide é vida humana, mesmo uma cultura de células originárias dum paciente é vida humana. Já a questão da "pessoa humana" ou "ser humano" é, ao que parece, mais pertinente. Mas onde está escrito que se o embrião (de menos de 10 semanas) é pessoa humana não pode ser morto e se não for já pode? O que interessa é saber se esse embrião, cuja constituição e desenvolvimento ao longo dessas 10 semanas é bem conhecido, é desprezável e pode ser eliminado por simples opção da mulher ou não, qualquer que seja a definição que lhe seja dada, chame-se pessoa ou não, classifique-se de feto, conjunto de células, bebé, ou qualquer outra designação.

Também me parece abusiva a alegação de que a morte do feto não equivale à morte de uma pessoa humana, que uma grávida que perde um futuro filho por aborto espontâneo não tem um desgosto idêntico ao da mãe que perde um filho e que portanto o aborto voluntário não deve ser classificado de crime. Mas afinal nunca a lei assimilou o aborto ao homicídio, sendo que as penas previstas para um caso e outro, concorde-se ou não com elas, estão longe de ser idênticas. O célebre e infeliz argumento de um defensor do "sim" de que "um ovo não tem os mesmos direitos dum frango" não tem, por isso, qualquer valor. Se um embrião de menos de 10 semanas tivesse os mesmos direitos de um homem, o aborto poderia ser sujeito a uma pena de 25 anos de prisão, como um homicídio.

O argumento de que o embrião não passa de um conjunto de células também não colhe. Que somos todos nós senão conjuntos de células? Fixemo-nos pois sobre as características do embrião ou do feto, já que a distinção entre um e outro, a idade em que deixa de ser embrião e passa a ser feto, varia conforme as especialidades entre as 8 semanas e o final do 3.º mês (13 semanas) e não parece consensual. Segundo a ciência, até às 10 semanas o embrião não possui sistema nervoso organizado e portanto não tem consciência. Mas daí não decorre imediatamente que pode ser morto por simples desejo da mãe. Um doente em coma não tem consciência, mas é crime matá-lo. Inversamente, o facto de já ter todos os órgãos formados, impressões digitais e o coração a bater impressiona e é um argumento forte, mas já ouvi defender que isso não classifica o embrião como pessoa humana.

Na minha modesta opinião, o aborto provocado (mesmo que se lhe chame interrupção voluntária da gravidez) é sempre moralmente condenável. No entanto há toda uma gradação de gravidade durante a gestação. Desde o uso da chamada pílula do dia, passando pelo aborto nos primeiros dias de vida do embrião em que apenas há uma diferenciação celular incipiente, pelas primeiras semanas em que os órgãos já estão formados, pelas fases posteriores em que o sistema nervoso do feto começa a funcionar e se presume que o novo ser já está consciente, até aos últimos meses de gravidez em que o bebé é viável fora do útero, há toda uma evolução durante a qual o grau de condenação (condenação moral. pelo menos) não pode ser o mesmo. Se repugna condenar mulheres a penas de prisão por terem voluntariamente abortado nas primeiras semanas de vida, também me parece exagerado dizer que não deve haver penas para quem provocar o aborto perto do 9.º mês.

Para finalizar e deixar clara a minha opinião, discutível como qualquer outra mas suficientemente importante para que me tenham pedido oficialmente que me pronuncie no próximo dia 11 de Fevereiro, direi que acharia aceitável a completa despenalização num prazo curto de poucas semanas, razoável que até cerca do 3.º mês, embora não despenalizado, a pena para o aborto não implicasse prisão, que a partir daí houvesse ainda uma gradação, sem a incoerência de até 10 semanas ser completamente livre e grátis e a partir de 10 semanas mais um dia ser ilegal e sujeito a 3 anos de prisão. Mas como a lei que se prepara e que será implementada se o sim ganhar é exactamente esta incoerência, não tenho dúvidas de que votarei "não".

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