segunda-feira, 27 de novembro de 2006

Morreu o Cesariny

Morreu o Mário Cesariny. Há dias, quando ouvi anunciar a exposição dos surrealistas e vi as imagens da inauguração em que ele figurava juntamente com o Cruzeiro Seixas e outro artista que eu desconhecia, disse de mim para mim: "Então o Cesariny ainda está vivo! Há que tempos não ouvia falar dele." E fiz logo tenção de ir ver a exposição, até porque também aprecio imenso as obras do Cruzeiro Seixas, que conheci em Angola, em 1962, quando, na minha viagem de fim de curso, o visitei com alguns colegas meus. Como tantos outros intentos, não cheguei a ir à exposição. Mas conhecia o Cesariny principalmente como poeta. E a verdade é que com a morte agora real do Cesariny perdi um bocado da minha memória. Não que seja o meu poeta preferido, mas tenho decoradas há mais de 40 anos duas poesias dele que fazem parte do meu imaginário. Uma vem publicada numa colectânea de obras num livrinho que possuo: "burlescas, teóricas e sentimentais" (colecção forma, Editorial Presença, 1972) e não resisto a transcrevê-la:

PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio nora o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que imporia não é ser novo e galante
— ele há tanta maneira de compor -uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar OS olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o, que imporia é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito, alto ao pé de muita
gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

A outra, tenho de tentar reconstituí-la de cor. Espero que a memória não me atraiçoe muito. Não sei sequer o título da poesia. mas cá vai:

Como a vida sem caderneta
Como a folha lisa da janela
Coma a cadela violeta
Ou a violenta cadela


Como estar egípcio e mudado
No salão do navio de espelhos
Como nunca ter embarcado
Ou só ter embarcado com velhos


Como os lábios prendem o copo
Como o copo prende a tua mão
Como se o nosso amor louco
Estivesse cheio de razão


E como se a vida fosse o foco
De um baço, lento projector
E nós dois ainda fôssemos pouco
Para uma tempestade de cor


Um ao outro nos fôssemos pouco
Meu amor, meu amor, meu amor.

Comments:
do sonho nascem os homens que querem fazer da vida um poema...
 
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