segunda-feira, 24 de julho de 2006

O tédio do futebol

Rui Ramos, identificado como "historiador", discorre longamente no Público de 2006.07.12 sobre "O ódio ao futebol".
Em suma, pretende demonstrar que os "colunistas candidatos a inteligentes se sentiram obrigados a deplorar a atenção que os portugueses deram ao futebol" numa "desmesura censória" e numa "criminalização do futebol", concluindo (ou melhor, como o próprio diz: "pressentindo") que na "excessiva censura" reside "o mais trágico sinal de atraso do país". Acusa os críticos de terem uma superstição que resume, ironicamente, na frase: "No dia em que os portugueses jogassem xadrez em vez de dar pontapés numa bola, ouvissem Chostakovich em vez de Amália, e lessem Voltaire em vez de ir a pé a Fátima, todos ficaríamos subitamente mais altos, mais louros, e mais ricos". E conclui: "Mas o futebol é apenas um jogo. Deixem o futebol em paz, e escrevam sobre o défice."
Achei o escrito lamentável, não por não gostar de futebol, mas pelo raciocínio retorcido que partindo de premissas de valor duvidoso chega a conclusões, quanto a mim, profundamente erradas. Senti-me atingido, talvez por preferir xadrez (apesar de ser péssimo jogador) a futebol (que jogo ainda pior que o xadrez), por preferir Chostakovich (apesar de não ser, nem de longe, o meu compositor preferido) a Amália (que não detesto mas também não me entusiasma) e por nunca ter lido a sério Voltaire mas mesmo assim admitir que gostaria mais de o ler do que de ir a pé a Fátima (Já fui várias vezes a Fátima, apesar de não ser católico, mas sempre de carro.).
Apesar de me enquadrar, portanto, quase no que o historiador autor do escrito define depreciativamente como os que "afectam um grande desprezo" pelo futebol "como referência de uma suposta distinção social e intelectual", não sinto qualquer ódio ao futebol, sinto sim um profundo desinteresse e um enorme tédio.
Porém, nem por isso sou mais alto, pelo contrário, sou baixote, nem louro, o meu cabelo é preto como o ébano, nem sequer sou rico, apenas remediado. A frase chega a ser ridícula. Se dissesse que os portugueses, pelas suas preferências mais cultas, ficariam exactamente mais cultos, e eventualmente mais felizes, nesse caso até me sentiria inclinado a dar-lhe razão, apesar da intenção irónica da conclusão. Mas mais altos e louros! Serão os amantes de jogos intelectuais e de música clássica mais altos e louros? Nunca ouvi os críticos do futebol (não me refiro aos críticos de futebol, evidentemente) insinuar tais transformações físicas. Quanto a mais ricos, só pelo que poupassem em bilhetes de futebol, que não são propriamente baratos. Mas gastariam talvez outro tanto em CDs e em livros.
No entanto deploro que os portugueses prefiram assistir nas bancadas ou bem instalados nas suas poltronas em frente dos televisores aos desafios de futebol, a "dar pontapés na bola". Este futebol não é um desporto, é um espectáculo. Mesmo muitos amantes de futebol, entre os quais não me incluo, o reconhecem. Se houvesse mais portugueses a praticar futebol e outros desportos, sem dúvida que ficariam mais desembaraçados e mais saudáveis. Mas a paixão pelo futebol resume-se as mais das vezes na assistência aos jogos, na leitura dos jornais da especialidade e nas discussões apaixonadas sobre os erros dos árbitros, sobre as transferências de jogadores e sobre outros assuntos de nulo interesse desportivo.
Não sou dos que pensam que os portugueses, "como espectadores, são os únicos a quem não é permitido distraírem-se um par de horas com duas dezenas de adultos a atirar pontapés a uma bola, sem receberem imediatamente um atestado de menoridade cívica e indignidade política". Que ideia! O problema não está em distraírem-se um par de horas. Está em repetirem semana após semana essa distracção em vez de, por exemplo, jogarem eles próprios, ou, porque não?, jogar xadrez, ouvir Chostakovich ou ler Voltaire. E não só os portugueses. A paixão quanto a mim exagerada e mal colocada pelo futebol não é exclusivo nosso, mas com os problemas dos outros podemos nós bem. Não é que o "fervor futebolístico" dos ingleses leve alguém a "desesperar da democracia em Inglaterra". Também o nosso fervor não tem nada a ver com o sentido democrático dos portugueses, pense-se o que se pensar da realidade deste sentido. A questão está mal colocada, mas suponho que não serei o único a ter alguma dificuldade em compreender como o futebol pode, em quase todo o mundo, mover multidões e movimentar milhões. Claro que o futebol, como outros desportos, terá os seus aspectos positivos, não só ao proporcionar distracção, mas ao ser pretexto de exercício físico e de preenchimento saudável de tempos livres de muitos jovens e menos jovens. O que deploro e me enche de tédio é o futebol profissional, com todos os seus aspectos sórdidos de negócios, influências, rivalidades ferozes e sentimentos tribais. E acho que não sou um dos "candidatos a inteligentes" que suscitam a fúria do historiador.

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