domingo, 12 de fevereiro de 2006

CIÊNCIA

Na revista "Pública" (suplemento do jornal "Público") n.º 506 de 2006.02.05 veio publicada a seguinte carta da leitora Sr.ª Alzira Torres, do Porto.


"Ciência
Parabéns pela nova série da Pública, "Perguntas sem respostas". É sempre interessante ver que os cientistas são capazes de um acto de humildade e de perceber que não têm explicações para tudo aquilo que não sabemos. O que é lamentável é que muitos apresentem como verdades completas aquilo que não passa de uma teoria. Por exemplo, o evolucionismo que continua a ser apenas uma teoria, uma hipótese de explicação para a origem da terra e da vida neste nosso planeta, mas que é ensinado nas nossas escolas como se se tratasse de uma verdade científica."

Esta carta merece alguns comentários breves, dado referir-se a uma questão que parecia pacífica entre nós, mas tem levantado grande celeuma e controvérsia nos Estados Unidos da América.

1) Em primeiro lugar, a leitora equivoca--se profundamente ao pensar que a ciência trata de "verdades completas". A ciência tenta descobrir a verdade, é essa a sua principal função, mas a ciência ou os cientistas nunca têm a veleidade de afirmar que o que descobrem é a verdade única e inquestionável ou, como diz a leitora, a "verdade completa". No avanço da ciência, quantas vezes o que se julgava ser uma verdade se revela ser apenas uma aproximação (como a lei da gravitação universal de Newton) ou mesmo estar completamente errado (como as teorias do flogisto ou do éter). Julgo ser exactamente por isso que muitas das grandes descobertas são designadas como "teorias" antes de recolherem tantas provas da sua veracidade que são reconhecidas na generalidade como válidas e designadas como "leis" da natureza. Porém muitas vezes a designação de "teoria" perdura para além do seu reconhecimento. É o caso da teoria da evolução, mas também da teoria da relatividade (restrita ou geral), da teoria atómica, da teoria da deriva dos continentes, entre outras.

2) Não sou um cientista, apenas um técnico que se interessa por ciência. No entanto penso poder afirmar que os cientistas, na sua maioria, principalmente aqueles que melhor encarnam o verdadeiro espírito da demanda científica, são, como diz a leitora, "capazes de um acto de humildade e de perceber que não têm explicações para tudo aquilo que não sabemos". Isto pode ser interessante, mas não tem nada de novo ou de extraordinário; deve ser sempre assim. Parece-me aliás que a frase, tal como está, tem um certo pleonasmo ou pelo menos encerra uma tautologia: Se não sabemos uma coisa, dificilmente poderíamos ter explicações para ela.

3) Outro equívoco está em pensar que o evolucionismo é "uma hipótese de explicação para a origem da terra e da vida neste planeta". As hipóteses de explicação para a origem da Terra têm a ver com as teorias de formação do sistema solar e dos seus planetas e nada disto têm a ver com o evolucionismo. Também a origem da vida neste planeta, para a qual a ciência têm várias hipóteses mas nenhuma apresentada como inquestionável ou "verdade completa", nada tem a ver com o evolucionismo. Só pôde haver evolução depois de a vida ter tido origem, pois antes não havia nada para evoluir. A teoria da evolução das espécies pretende, sim, explicar como os seres vivos, após a sua origem, evoluíram ao longo dos milhões de anos, dando origem a novas formas de vida.

4) Entrando no cerne da questão: O evolucionismo é uma das teorias científicas que mais fortes argumentos reúne. Dentre estes recordo o registo fóssil, a diversidade de espécies comparada em regiões geográficas isoladas, a identidade em todos os seres vivos do código genético, a constância de alguns genes em espécies muito diferentes e a lógica do mecanismo da especiação. No entanto não se pode considerar uma "verdade completa", não só porque, como disse atrás, em ciência não existem verdades completas, mas também porque há várias correntes evolucionistas e a própria teoria tem evoluído com novas descobertas e desenvolvimentos teóricos. Assim, aspectos como o papel da selecção natural e a evolução contínua ou por saltos ou ainda a importância das grandes catástrofes e das extinções em massa permanecem temas de discussão. Mas nada disto é razão para que não se ensine nas escolas. A teoria da evolução é actualmente a explicação mais completa para a existência das espécies actuais e extintas e para a história da vida na Terra. Direi mesmo que é a única explicação científica actual para estes factos. Tudo o mais são mitos. Mas, mesmo admitindo que o evolucionismo seria apenas uma hipótese de explicação, não merece ser ensinado como a melhor hipótese no estado actual da ciência? Não se deve ensinar a geometria euclideana porque a relatividade veio mostrar que não é mais que uma aproximação? Não se deve ensinar a teoria do Big-Bang porque, apesar dos muitos argumentos a seu favor, não passa de uma hipótese?

5) Espero que não se importe para Portugal a triste controvérsia da contradição entre evolucionismo e religião e em particular, neste último aspecto com as religiões cristãs e o relato bíblico da criação dos seres vivos. A própria Igreja Católica não nega o evolucionismo. Ainda me lembro que o meu professor de Religião e Moral, o saudoso Padre Botelho, cujas aulas eu gostava de frequentar apesar de, como não católico, poder ser dispensado, dizia nas suas aulas que o barro bíblico com que Deus terá feito o Homem não teria obrigatoriamente de ser tomado como barro autêntico, daquele com que se fazem as bilhas (ou faziam, que as bilhas para armazenamento de água passaram há muito de moda) mas significaria um material não humano, porventura um macaco. Espero que tantos anos depois não se dê o retrocesso de discutir se o evolucionismo deve ou não ser ensinado, ou se só deve ser referido em simultâneo com hipóteses não científicas, como a concepção inteligente, ou com mitos religiosos, por muito respeito que possam merecer as religiões.

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